Tristeza entre colegas no Colégio Militar, amigos relembram o jovem depois do crime covarde na 112/113 Sul. Vizinhos relatam a sensação de insegurança. Especialistas cobram políticas públicas sérias contra a violência juvenil
O primeiro dia de aulas sem a presença de Isaac Vilhena, 16 anos, foi marcado por muita emoção e homenagens no Colégio Militar de Brasília (CMB). Na última sexta-feira (17/10), o adolescente foi esfaqueado dentro de um parque, na entrequadra da 112/113 Sul, quando, após ser assaltado por um grupo de menores. Em nota, a escola afirmou que promoveu uma série de ações voltadas ao acolhimento da comunidade escolar por meio de rodas de conversa, oração e reflexão em homenagem ao aluno e em apoio à turma dele.
A instituição de ensino também afirmou que desenvolveu um trabalho de escuta e acolhimento com os alunos da turma de Isaac com os psicólogos do colégio, com o objetivo de oferecer suporte emocional e acompanhamento psicológico aos colegas e professores.
Amigos de Isaac, que estudavam com ele no CMB, relataram o impacto do assassinato do colega. “Foi muito difícil, eu demorei para acreditar e hoje eu só conseguia chorar”, disse um deles, lembrando que a notícia chegou por mensagem de um amigo próximo. “Ainda não conseguimos acreditar. Acho que hoje foi ainda mais doloroso por voltar a rotina sem ele. Nem tivemos aula direito, foram mais homenagens e orações a ele”, destacou.
Eles descreveram Isaac como uma presença alegre e querida por todos. “Ele estava sempre sorrindo, sempre conversando com a gente, um menino muito bom, não fazia mal a ninguém. Vai ser lembrado como um irmão mesmo”, disse um dos colegas.
Na praça onde ocorreu o crime, o clima foi de tristeza e solidariedade pelo menino. Ivana Aquino, de 58 anos, moradora da Asa Sul há 20 anos, relatou estar profundamente abalada com o caso. “Eu estava sentada, ali embaixo, com as crianças quando aconteceu. Ouvi a ambulância chegando e pensei que fosse algum idoso precisando de socorro, nunca iria imaginar que alguém tinha morrido. Ainda estamos todos muito abalados”, disse, lembrando o choque de presenciar a violência tão próxima.
Para Elisângela Bezerra, 51, o choque foi maior pela proximidade do crime com a sua realidade. “Meu filho também tem 16 anos e joga basquete aqui, nessa mesma praça. Ele vinha treinar aqui na sexta, mas acabou mudando de ideia de última hora. Não tem como a gente não se colocar no lugar dessa mãe”, disse, emocionada.
Ela destacou o medo constante e a sensação de impunidade. “A gente não sabe mais como viver. Saímos de casa e precisamos ter cuidado extremo, porque não tem lei para menores de idade. Infelizmente, ninguém toma providência, então a gente só se protege e pede a Deus”, afirmou.
A psicóloga Márcia Legal, 59, mora na região há 14 anos e comenta que o fato dos responsáveis serem menores de idade torna o episódio ainda mais doloroso. “É profundamente triste ver uma juventude com tanto potencial se perder por falta de estrutura familiar, de educação básica e ética. A sociedade precisa repensar seu sistema de educação e o encaminhamento desses jovens, porque depois que acontece, buscamos justiça, mas é essencial entender o que leva à banalização da violência”, lamentou.
Violência com adolescentes
Em menos de um mês, o Distrito Federal foi palco de pelo menos quatro crimes com violência envolvendo menores de idade. O mais recente, foi das tragédia que tirou a vida de Isaac Vilhena. O jovem teria corrido atrás dos agressores para recuperar o celular roubado e foi atingido no peito por uma faca. O caso levantou o alerta das autoridades e sociedade sobre menores infratores na capital.
Na ocasião, seis menores foram apreendidos pela Polícia Militar (PMDF), no Paranoá, suspeitos de envolvimento no crime. O delegado Rodrigo Larizzatti, que estava de plantão e conduziu o trabalho de colher os depoimentos, relatou detalhes do comportamento dos menores na delegacia após serem apreendidos. "Chegaram a caçoar da legislação, fazendo piadas e rindo, o que evidenciou total desprezo e falta de humanidade. Apenas um dos sete perguntou se a vítima havia falecido, demonstrando algum tipo de sentimento. Os demais, não. Nenhum deles apresentou arrependimento ou culpa", contou.
Outros casos
A série de crimes violentos cometidos por menores de idade começou a chamar a atenção dos moradores do DF depois de, em 21 de setembro, um adolescente de 15 anos esfaquear o torcedor vascaíno Eumar Vaz, 34, em um ônibus. Ao entrar no coletivo, em Samambaia, cerca de 10 torcedores rivais, do Flamengo, ordenaram que Eumar tirasse a camisa. Ao se recusar, o torcedor vascaíno foi espancado e esfaqueado. O menor envolvido foi flagrado em um vídeo escondendo a arma na cintura.
Menos de 20 dias depois, um segundo caso chamou atenção após um motorista de aplicativo ter o carro roubado por três adolescentes depois de parar em um semáforo em Ceilândia. Os suspeitos de 13, 14 e 16 teriam mandado o motorista ir para o banco do passageiro, se não ele seria morto. Apesar da ameaça, o condutor e o passageiro conseguiram sair do carro no momento do roubo e não se feriram. Os adolescentes foram perseguidos e apreendidos por policiais militares.
Quatro dias depois, o policial penal Henrique André Venturini foi encontrado morto dentro de um carro no Riacho Fundo II após ser atingido com golpes de faca na região abdominal por um trio — um maior e dois menores de idade. O agente fazia renda extra como motorista de aplicativo e foi ferido com a própria arma após reagir ao assalto. Dois dos menores ficaram feridos na ação.
Debate
A sequência de crimes praticados por adolescentes reacendeu o debate sobre a responsabilização penal de menores de idade. Para a advogada Cristiane Britto, especialista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a iniciação de menores de idade no mundo no crime é multifatorial. “Em geral, começa pela ausência do Estado nas periferias e pela fragilidade dos vínculos familiares e comunitários. Fatores como pobreza extrema, evasão escolar, violência doméstica e consumo precoce álcool, que levam a outras drogas e criam um terreno fértil para o aliciamento”, explicou. Além disso, a especialista destacou o glamour representado pelo crime. “Em muitos locais onde o Estado não chega com segurança, lazer e oportunidade, o tráfico se apresenta como uma forma de pertencimento, poder e renda”, reforçou.
Segundo Cristiane, embora o ECA preveja responsabilização, a ideia de punição branda tem efeito estimulante sobre os menores infratores. “O limite de três anos de internação, mesmo para crimes gravíssimos, faz com que muitos cometam delitos acreditando que logo estarão livres. Esse tipo de percepção reforça o uso de menores pelo crime organizado e demonstra que a aplicação prática do ECA precisa ser revista, com mais rigor, estrutura e acompanhamento efetivo, para que a responsabilização deixe de ser apenas formal e se torne realmente dissuasória”, destacou.
Além da prevenção por meio de políticas públicas desde a primeira infância em locais vulneráveis socialmente, Cristiane reforça a importância de medidas socioeducativas e de reinserção social previstas pelo ECA. “Todo adolescente em cumprimento de medida socioeducativa deve ter um Plano Individual de Atendimento, que articula educação, profissionalização, saúde e fortalecimento familiar. A Justiça Restaurativa também é uma ferramenta importante, envolvendo vítima, infrator e comunidade em um processo de reparação simbólica e reconstrução de vínculos”, completou.
O advogado Berlinque Cantelmo, especialista em ciências criminais, explica que a solução para os menores infratores que seguem fazendo vítimas pela capital não está em punir mais, mas em punir melhor. “É importante garantir a efetividade das medidas já previstas, o cumprimento rigoroso das medidas socioeducativas para menores infratores, e o fortalecimento das políticas públicas que assegurem educação, saúde, profissionalização e proteção familiar. Só assim será possível transformar o ciclo da violência em um processo real de responsabilização, ressocialização e prevenção, em vez de simplesmente reproduzir a lógica do encarceramento precoce”, destacou.
Negligência
Para a psicóloga jurídica Patrícia Barazetti o envolvimento de crianças e adolescentes com o crime é resultado de um conjunto de fatores estruturais e emocionais, e não de uma predisposição individual. “Esses jovens não nascem propensos ao crime, eles respondem a contextos de negligência social”, afirmou. Segundo ela, a combinação de baixa autoestima, ausência de projetos de vida e necessidade de pertencimento se soma à desigualdade social, à precarização das famílias e à falta de políticas públicas efetivas, formando um terreno fértil para o ingresso no mundo infracional. “O ato infracional, muitas vezes, é uma tentativa de sobrevivência simbólica ou material em uma sociedade que falhou em oferecer base, amparo e perspectiva”, completa.
Barazetti acrescenta que, em muitos casos, a violência cometida por menores contra outros menores é reflexo de uma reprodução da agressividade vivida em casa ou na comunidade. “Jovens que agridem, em geral, cresceram expostos a situações crônicas de negligência, abandono e hostilidade. A violência passa a ser internalizada como uma forma legítima de relação”, explicou.
Muitos dos adolescentes envolvidos com o mundo do crime vêm nesse mundo, a oportunidade de encontrar uma “família substituta”, explica a psicóloga, psicanalista e neuropsicóloga Silvia de Oliveira e Silva. “Do ponto de vista psicológico, essa adesão atende a uma necessidade básica de vínculo e aceitação. Já na ótica psicanalítica, o grupo cumpre uma função simbólica: oferece identidade, lei e reconhecimento, ainda que de forma distorcida. Sem bons exemplos, o crime se apresenta como a única forma de ser visto e valorizado”, destaca.
Por Correio Braziliense